No Brasil, a cada ano, nascem cerca de 4 mil crianças com pé torto congênito. Até 20 anos atrás, o tratamento para correção era longo, caro e deixava sequelas. No entanto, uma iniciativa do Rotary ajudou a difundir um método mais rápido, mais barato e eficaz e que, hoje, é padrão nos atendimentos do Sistema Único de Saúde no Brasil: o método Ponseti.
Não existe uma explicação clara para as causas do pé torto nas crianças, mas, nascer com os dois pés virados para dentro impede a correta locomoção e dificulta a inserção social dessas pessoas. Até o início dos anos 2000, a correção envolvia duas grandes cirurgias, uma para cada pé em dias separados, e o uso de gesso por um longo período. Mesmo assim, os resultados não eram totalmente satisfatórios.
“Os pés ficavam muito duros, muito sem força. Era um pé que tinha mais chance de ser doloroso, de ter artrose, ou seja, os resultados a longo prazo não eram muito legais. E isso não era só aqui no Brasil, era no mundo todo”, lembra Monica Nogueira, médica ortopedista e associada do Rotary Club de São Paulo – Sudeste.
Com especialização em ortopedia infantil e em tratamento de problemas congênitos, Monica ajudou a trazer e difundir no Brasil o método Ponseti, que ela conheceu durante um período de estudos nos Estados Unidos.
O método foi desenvolvido pelo médico espanhol Ignacio Ponseti, na década de 1940, que trabalhou na Universidade de Iowa. O tratamento consiste na manipulação delicada dos pés da criança aliada à utilização de gessos. Envolve, ainda, a realização de uma pequena cirurgia e o uso de órteses (botas corretivas).
O uso do método Ponseti reduz o tempo de correção do pé torto de cerca de dois anos para cerca de dois meses, apenas com a necessidade do uso da órtese para evitar recidivas (que os pés fiquem tortos novamente) até os quatro anos de idade.
Ao perceber o avanço que o método significava para o tratamento de tantas crianças que tinham o problema, Monica e um grupo de colegas se engajaram para oferecer uma sequência de treinamentos em diferentes localidades do mundo, para difundi-lo. Foi aí que surgiu a oportunidade de se juntar ao Rotary para implementar e dar escala a um projeto que ensinaria o método a médicos de diferentes partes do Brasil. Mais tarde, esses médicos formariam o grupo que hoje é chamado de Ponseti Brasil.
Monica atuava em parceria com o médico José Morcuende, também da Universidade de Iowa, e conta que ele buscava uma instituição idônea para difundir os treinamentos no método Ponseti.
O Rotary Club de Iowa, ela explica, tinha fortes ligações com o doutor Ponseti e se tornou parceiro dos ortopedistas para difundir o tratamento pelo Brasil e, depois, para toda a América Latina. Os treinamentos foram realizados por meio de mentorias, como já havia sido feito anteriormente, em parceria com a USAID na Nigéria, Paquistão e Peru. A USAID é a agência de cooperação internacional dos Estados Unidos.
Com o sucesso da iniciativa, Morcuende e Monica se tornaram rotarianos e trouxeram a ideia do treinamento para o Brasil, já com a intenção de torna-lo um grande projeto.
Assim, em 2016, já associada ao Rotary Club de São Paulo – Sudeste, em uma parceria com o Rotary Club de Iowa City A.M., Monica conseguiu liderar o projeto que treinou mais de 50 médicos brasileiros no método Ponseti: o Erradicando o Pé Torto Congênito no Brasil.
“A gente treinou 50 ortopedistas pediátricos que já trabalhavam no serviço público, 50 foi o número dos patrocinados, mas outros médicos também participaram, pois prestavam assistência aos médicos convidados”, detalha a médica.
“Parte das aulas era feita online e quando eles vinham (até nós), a gente partia para a ação. Víamos cinco crianças a cada quatro horas e tínhamos discussões detalhadas. A gente também fez workshop em modelos plásticos. Fizemos o treinamento de dez médicos com dez professores, ou seja, um professor para cada aluno, e isso criava um vínculo entre eles, que dava suporte ao aluno”, complementa.
Um dos objetivos do projeto era que cada participante, ao terminar o treinamento, voltasse a sua unidade de atendimento e implementasse uma clínica Ponseti. A clínica, explica Monica, não se trata de uma estrutura física exclusiva para a realização do método, mas de um período fixo de atendimento (uma manhã ou uma tarde por semana, por exemplo) para tratar exclusivamente crianças com pé torto.
“Conseguimos a implantação de 38 clínicas Ponseti [entre os médicos treinados]. Por variados motivos, alguns (participantes) não conseguiram implantar”, diz.
Os treinamentos foram realizados em cinco séries separadas, em cidades do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. O total investido no projeto foi de US$ 193.591. Os principais financiadores do projeto foram os distritos* 4420 e 6000, mas o trabalho também recebeu aportes dos distritos 5970 e 5300.
Associados do Rotary também receberam treinamento para que entendessem a importância do tratamento e ajudassem na correta disseminação de informações sobre o assunto. Enfermeiros e técnicos de gesso foram instruídos a como dar suporte aos médicos, cada um em sua área de atuação.
“Podemos dizer que, depois desse projeto do Rotary, o tratamento no SUS está muito mais ampliado. O Rotary foi vital nesse projeto que deu origem a várias clínicas do SUS”, aponta Monica. Atualmente, o Brasil conta com 80 clínicas Ponseti que atendem pelo Sistema Único de Saúde. Na rede privada, o tratamento do pé torto pelo mesmo método pode variar entre R$ 2 mil e R$ 14 mil.
A única parte do tratamento que ainda não é oferecida pelo SUS é a que se refere ao uso das órteses, as botas corretivas para a manutenção da correta posição dos pés. As órteses podem custar de R$ 250 a R$ 600. Cada paciente necessita de cinco a seis órteses durante o tratamento, já que elas precisam ser trocadas devido ao crescimento da criança.
Como funciona o método Ponseti?
Como já mencionado, inicialmente, o método Ponseti trata o pé torto com a manipulação delicada dos membros seguida da utilização de gessos. O gesso é trocado a cada semana, e o tratamento completo costuma usar de cinco a sete gessos, fazendo com que, em cerca de dois meses, os pés da criança estejam corrigidos.
Após a correção da posição dos pés, o paciente passa por uma pequena cirurgia, na qual há um corte no tendão de Aquiles. O procedimento é simples e pode ser feito em ambulatórios, não necessitando a utilização de centros cirúrgicos.
Monica lembra que o ideal é que a criança seja levada para tratamento logo após seus primeiros meses de vida, pois, quanto mais cedo a correção for feita, melhor será o resultado do tratamento.
Após a cirurgia, é preciso que o paciente passe a usar órteses para evitar que os pés fiquem tortos novamente. No tratamento feito em um paciente recém-nascido, por exemplo, o bebê passa três meses usando a órtese 23 horas por dia, tirando-a apenas para tomar banho. Após esse tempo, a órtese deve ser utilizada no período noturno, por 14 horas, até os 4 anos de idade.
Monica destaca que essa é uma fase muito importante do tratamento, mas que acaba sendo negligenciada por alguns pais.
“Alguns pais pensam que a órtese é uma vilã, porque a criança fica imobilizada, mas queremos passar a visão de que a órtese é a fada madrinha do tratamento. Com o pé da criança corrigido e o uso adequado da órtese, acabou, não precisa fazer mais nada. Não precisa fazer fisioterapia, não tem que fazer tratamento especial, tomar remédio, não tem que fazer nada, só isso. Por isso que ela é importante”, afirma.
Segundo a médica, quando o uso da órtese é feito corretamente, as chances de recidiva (que os pés fiquem tortos novamente) diminuem consideravelmente com o passar do tempo.
“Para se ter uma ideia, ela é de 100% no recém-nascido, se não usar a botinha. Com um ano, é de 80% de recidiva sem a bota, com dois anos é de 60% de recidiva sem a órtese, três anos é de 20% de recidiva sem a bota e, aos quatro anos, é de 10%. Com um protocolo legal, o risco de recidiva até os quatro anos, com a órtese, é zero”, destaca.
Para Monica, ainda falta haver uma divulgação mais ampla dos locais onde são realizadas as clínicas Ponseti. Segundo ela, essas informações acabam sendo divulgadas informalmente, entre os próprios pais, por meio da internet. “A rede não está formalizada. O referenciamento é feito pela rede de pais. A mãe deveria sair da maternidade com um papelzinho indicando um serviço que faz isso”, aponta.
Também é por meio dos próprios pais que se fazem indicações sobre bancos de órteses, nos quais as botas já usadas são cuidadas, pintadas e vendidas a preços mais acessíveis.
Segundo Monica, os treinamentos realizados no Brasil foram um piloto. Com o sucesso visto aqui, outros Rotary Clubs também já realizaram treinamentos no método Ponseti na Colômbia, México, Bolívia e República Dominicana. Os próximos países que devem realizar treinamentos na área são Argentina, Paraguai e Equador.
Para este ano, está prevista a avaliação do programa, com visitas aos médicos treinados pelo projeto. Com a avaliação, espera-se conseguir uma validação da rede de clínicas pelo Ministério da Saúde para melhorar o acesso ao tratamento do pé torto.
*Para quem não conhece a estrutura do Rotary International, regionalmente, os Rotary clubs são agrupados em distritos.