Foi por uma troca de mensagens no Facebook, na qual o ortodontista brasileiro Saulo Borges, associado do Rotary Club de Arcos (MG), entrou em contato com o Rotary Club de Simferopol, na Ucrânia, e deu início a um dos maiores projetos de cooperação internacional entre um clube do Brasil e clubes do exterior: o projeto Smile Ukraine, para tratamentos de pacientes com fissuras e anomalias dentofaciais.
Em sua mensagem, Saulo propôs um intercâmbio de profissionais voltado ao corpo médico do Hospital Infantil da Crimeia, que era apoiado pelo clube de Simferopol. A ideia era trabalhar o desenvolvimento de competências e melhoria da prática de cirurgias em crianças com fissura labial, conforme solicitado por aquele hospital. Para realizar esse treinamento, Saulo conseguiu o apoio de profissionais da Universidade de São Paulo (USP) em Bauru, onde ele foi aluno.
No final de 2013, os profissionais brasileiros fizeram sua primeira viagem à Ucrânia para dar início ao treinamento dos médicos locais. Na época, o hospital da Crimeia atendia de 20 a 30 crianças por ano, mas as coisas acabaram mudando bastante com o tempo, devido a questões políticas da Ucrânia.
“Imaginamos que íamos ensiná-los a tratar crianças com fissuras labiais, mas não imaginávamos que íamos encontrar situações tão complexas e casos tão complicados quanto os que encontramos”, explica Saulo.
Pouco tempo depois do início da parceria entre brasileiros e ucranianos, a região da Crimeia foi anexada pela Rússia e, após um tempo suspenso, o projeto precisou ser transferido para a capital ucraniana, Kiev.
Com a transferência do projeto para Kiev, foi firmada uma parceria com a Universidade Médica Nacional Bogomolets, a maior do país.
“Essa universidade tem um hospital infantil e atendia, em média, 500 novos pacientes por ano. Ou seja, o projeto saltou de 20 a 30 pacientes para 500. Na Ucrânia, tudo é muito centralizado em Kiev, todo mundo se dirige para lá, então, pegamos casos muito complexos de todos os cantos do país”, destaca Saulo.
Em Kiev, o projeto teve seu escopo ampliado, passando a englobar também pacientes com deformidades craniofaciais e cirurgias ortognáticas (para correção em adultos com alterações no desenvolvimento ósseo facial). A ampliação do escopo trouxe desafios enormes para Saulo e seus colegas, já que os profissionais ucranianos não estavam familiarizados com as técnicas de cirurgia ortognática.
A falta de conhecimento de práticas nesse tipo de cirurgia e tratamento não atingia apenas os cirurgiões, mas também outros profissionais de saúde com envolvimento fundamental nesta área, como anestesistas, ortodontistas e fonoaudiólogos.
Os problemas iam desde anestesistas que não estavam preparados para sedar corretamente os pacientes a fonoaudiólogos que não conheciam as técnicas para reabilitar pacientes que passaram por cirurgias de fissuras e ortognáticas, entre outros.
Assim, como parte do processo de treinamento dos profissionais ucranianos, os brasileiros acabaram realizado uma série de cirurgias em pacientes naquele país.
“Foram ministradas dezenas de aulas teóricas e realizadas aproximadamente 30 cirurgias de alta complexidade pelos cirurgiões brasileiros em Kiev. As cirurgias foram realizadas pelo simples fato de que os ucranianos não sabiam como realizá-las adequadamente pelas técnicas preconizadas pela USP de Bauru. Estas cirurgias foram filmadas e transmitidas ao vivo para diversos pontos da universidade e do hospital infantil, para que vários profissionais e alunos de medicina da pós-graduação pudessem acompanhá-las”, conta Saulo.
A parceria para treinamento dos profissionais ucranianos incluiu viagens de brasileiros à Ucrânia e de 30 profissionais ucranianos ao Brasil, além de várias horas de aulas teóricas para mais de 400 professores e alunos de pós-graduação em Kiev com as técnicas usadas pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, conhecido por Centrinho.
“O Centrinho é um dos maiores centros de referência do mundo em reabilitação de pacientes com anomalias craniofaciais. O aprendizado adquirido pelos ucranianos, visitando e recebendo treinamentos no Centrinho, potencializou os conhecimentos adquiridos, permitindo aos visitantes que participassem de inúmeras atividades teóricas e práticas diariamente, o que seria impossível de ser realizado ou executado em Kiev”, aponta Saulo.
Até o momento, o projeto recebeu investimentos de mais de US$ 273 mil, com aportes de Rotary Clubs do Brasil, Ucrânia, Dinamarca e Suécia. O Smile Ukraine tornou-se um projeto de longo prazo, graças a sua complexidade, extensão e sucesso. O último treinamento do projeto aconteceu em Kiev em 2019, pois a pandemia acabou cancelando a viagem de uma equipe ucraniana prevista para acontecer no ano passado, mas existe a possibilidade de que o projeto ainda ganhe mais etapas.
Os progressos que o projeto permitiu, no entanto, modificaram de forma estrutural o tratamento de pacientes com deficiências craniofaciais na Ucrânia, inclusive levando à criação da Sociedade Ucraniana de Cirurgia Ortognática, que regulamentou normas e procedimentos antes inexistentes no país, destaca Saulo.
“Desde o início dos treinamentos em Kiev, em 2014, houve uma mudança radical na qualidade dos serviços oferecidos pelos profissionais treinados. Desde os cuidados com esterilização e paramentação para cirurgias, preparo de instrumentais, novas técnicas de anestesia, melhor interação entre cirurgiões, fonoaudiólogos e ortodontistas, utilização de novas técnicas cirúrgicas mais eficientes, e realização de cirurgias ortognáticas complexas, que não eram executadas e nem ensinadas no país. O projeto Smile Ukraine permitiu que mais de cinco mil pacientes ucranianos recebessem os benefícios dos treinamentos, direta ou indiretamente.”